segunda-feira, 30 de março de 2015

Megan



Megan
A androide que eu trouxe para casa que comprei três meses atrás na liquidação das Casas Bahia enlouqueceu. Estamos trancados dentro do armário, após as portas de segurança de fibra de carbono e do campo iônico, procurando com o celular o código para desarmar a criatura. O mundo moderno trouxe certa liberdade, certa inovação, contudo, sinto saudades dos tempos antigos. Minha filha há umas duas semanas, teve um travamento no seu sistema operacional. Há alguns anos a OMS solicitou o implante de umas memórias artificiais nas pessoas das zonas consideradas terceiro mundo, para ampliar a capacidade de aprendizado e suas aptidões cognitivas, na tentativa de capacitar para o mercado cada vez mais competitivo e tecnológico, após a virada do milênio. Aconteceu por uma decisão unilateral de empresas de tecnologia, com o advento criado por foros de tecnologia chinesa. Eu creio que há uns 30 anos todos nascem com os implantes, o chip pequeno com uns 120 terabytes e uma ligação com neurônios, rodando um sistema hibrido, que simula uma rede de neurônios artificial. Integra-se com naturalidade ao corpo, adapta-se às ondas cerebrais. Os adolescentes descobriram como usar o wireless para fazer distribuição de vídeos e a partir daí simplesmente sobrecarregar o chip até o colapso do sistema. Meu carro desligou-se há 4000 metros de altitude quando estava a caminho do hospital e o jeito foi usar a ponte de transferência. A ponte de transferência é um módulo de tele transporte experimental que desfaz a ordem atômica e a reconstrói em outro lugar, em casos de emergência a gente aperta o botão de pane do carro e voilá! África do Norte. Não perguntem por que, é sempre lá, a única usina do mundo de reconstrução, e tem sempre milhares de carros chegando, uma barulheira infernal. Dez minutos desmaiados até as funções cerebrais voltarem e pelo menos dois anos da vida pregressa apagados. Somos embarcados em aeronaves e reencaminhados para nossos destinos, após os procedimentos de seguro, administrativos e a checagem médica.  Aproveitei para “destravar” - termo técnico para habilitar o sistema hibrido - Luana durante a checagem médica. Porém, como dizia antes, o que me interessa agora é o código de desarme desta minha androide enlouquecida. Ela é uma cópia de uma mulher da antiguidade, na época em que existia o cinema 3D, não tenho ideia do que seja, creio que há uns 800 anos atrás.  Ela é cópia de uma antiga atriz de nome Megan Fox, creio, não lembro bem. Minha esposa ficou meio enciumada com a androide, mas como ela fazia os serviços pesados, basicamente operar os controles remotos dos equipamentos de lavagem, jardinagem, lava-roupas, lava-louças e etc, não estava criando muito caso.  Até que semana passada, quando a androide entrou na sala de reparos. Um pouco antes da explosão. Dizem que músculos artificiais feitos de fibra de carbono e complexo bioquímico de teia de aranha podem levantar até cinco toneladas.  Mentira. Pura mentira. A Megan, como eu apelidei a androide, levantava com facilidade até doze.  Duas semanas atrás levámos ela num simpósio de latas-velhas, como chamamos aos robôs do passado. Nós a levamos até a arena com lutas de robôs e por acidente uma daquelas máquinas fora-de-época descontrolou-se e caiu sobre a plateia, geringonça com braços em formas de garra, esteira e coisas do gênero. Só não nos alcançou porque Megan os lançou de volta, cerca de 60 metros de distancia, para o meio da arena. Com um único braço. Calculei o esforço. Doze toneladas.  Não sabemos o que a Megan quer, enquanto destrói nossa residência flutuante. A casa adernou uns 30 graus, porque dois dos estabilizadores foram danificados. Depois que minha filha voltou do “destravamento”  Megan começou a agir de um modo estranho. Na verdade, ambas. Luana e Megan. Luana parece que esqueceu onde fica o próprio quarto. Na escola ocorreu um acidente, disseram que foi um acidente, ela estabeleceu uma mini rede com os colegas de classe e metade da classe passou mal, sendo que a Clarissa e a Antuérpia desmaiaram. Os alunos agora não querem mais compartilhar dados diretamente usando o chip, só o fazem através do servidor, eles gesticulam e carregam o cubo e a Luana necessitou ter que tocar o cubo para receber os dados das matérias que perdeu semana passada. Todas as 23000 páginas. O tocar na nossa sociedade é considerado uma coisa muito primitiva, ao menos na escola. Embora todos caminhem, façam exercícios e demais atividades, evitam socialmente, levantar ou tocar um objeto com as mãos. A não ser com o uso de um envoltório, a famosa armadura de alta tecnologia que fica mudando de padrões, ou apoio para as descidas com o uso das mochilas de vôo. As mochilas atuais possuem 200 horas de autonomia. Recarregam em minutos. Teoricamente poderiam cruzar o atlântico usando uma delas. Mas levaria dias. Dois dias para ser mais exato. Seja como for, Luana está estranha e hoje de manhã, após algo que aconteceu no laboratório de reparo, começou uma forte discussão entre ela e a Megan. E depois o inferno.
Achei. Enfim, encontrei o código, bem a tempo, porque a Megan acabou de quebrar o campo iônico do quarto, e as placas de metal se dobravam sob o peso de suas poderosas mãos.
Megan entrou por entre as portas destruídas, quando notei que um dos seus braços estava semidestruído. Megan olhou diretamente em direção a Luana. Que estremeceu. Começou a correr fortemente em nossa direção. Espero, de coração, que o código de desarme funcione.
Luana colocou a mochila-jato e fugiu. O código não funcionou. Megan lançou o telefone para longe, enquanto Luana subia numa espiral. Megan olhou para os lados, como se não me visse e procurou um pedaço de metal. Gritei para que ela não o fizesse, iria matar a Luana!
Megan, transtornada, virou-se para mim e disse:
- Ela não é a Luana!
Sim. O tiro com o pedaço da porta foi certeiro. Há trezentos metros de altura, para o meu pavor absoluto, ela acertou a menina. Caiu a trezentos metros da casa.  Megan ainda correu em sua direção e chegou lá antes.
Ficou olhando para o corpo caído no chão.  O terror absoluto me cercava, mas a medida que me aproximava não via o corpo de minha filha. Não era um corpo. Ou era um corpo, mas não de uma pessoa.
Alguma coisa ocorrera dias antes na transferência. Na África do Norte. Fui com a Megan até lá e após intensa busca encontramos a verdadeira Luana num hospital de uma base próxima.  Um sistema de inteligência artificial pirata usara um defeito do sistema, gerara uma simbiose, um clone, e assumira o lugar de Luana.  E A Megan descobrira.
Então, sinto falta dos tempos antigos. Antes do chip. Antes dessas complicações todas. Numa época em que podíamos usar nossos equipamentos antigravidade e fazer nossos próprios voos sub-orbitais, despretensiosamente.
Bons tempos. 




Welington Corporation

 

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