quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Jacó


Estou com frio.  Perdi o tempo em que cheguei aqui no Jaboque. Sozinho. Sempre esfria aqui quando anoitece. Daqui a algum tempo será madrugada. O vasto pavilhão de estrelas que preenche os céus sobre minha cabeça, a luz da lua que deixa meu cajado tosco com esse brilho prateado, não são o bastante pra me alegrarem nesta noite. Deixei meus filhos e minhas esposas junto aos meus criados e minhas tendas já faz mais de uma hora. Não permiti que ninguém me seguisse até aqui, mesmo porque não quero que ninguém veja o que estou para fazer. Minhas roupas tremulam ao vento que sopra fortemente nesta hora nesta região, fazendo as árvores, poucas, porém robustas, balançarem como se dançassem. Eu toco a margem do Jaboque com um dos meus joelhos enquanto me abaixo para passar as minhas mãos encrespadas pelo frio sobre a face das águas perturbadas pela ventania e aguardo a sua chegada.  Sei que ele virá. Eu sinto isso. Eu percebo de um modo que não sei explicar, do jeito que eu aprendi nos anos em que passava as madrugadas cuidando das ovelhas de meu sogro.
Fazem mais de vinte anos que não desço a este vale e não toco estas águas. Revejo-me jovem e magro, com uma trouxa de roupa nas costas e um cantil chorando enquanto atravessava o rio para ir não sabia para onde, parando para escutar se eu fora seguido por alguém, quando fugia da face de meu irmão.  Hoje estou do mesmo modo, sozinho e sem saber o que fazer. Tenho filhas e filhos e uma admirável multidão de ovelhas. Vou ao encontro de meu passado, sem saber se sobreviverei. Perdi a consideração de meu pai e o amor de meu irmão quando numa tentativa idiota de ter coisas que hoje já não fazem tanto sentido. Enganei meu velho e cego pai para obter direito a uma herança a qual nunca usufrui. Todas as vezes que enviei mensageiros para saber da saúde de meu velho pai, eles traziam as novas e junto uma ameaça de morte do rancor que nunca se apagou no coração de meu irmão, o forte Esaú. Se aquele que espero não vier, sei que a vingança de meu irmão atingirá não somente a mim, mas a todos os meus. Sou um homem morto, tentando reconquistar um passado destruído, e não sei se existe alguma possibilidade. Talvez o melhor lugar para mim fosse esse vale da minha infância, o lugar ideal para ficar e morrer.
Escuto-o chegar.
Conheço o som que vem do alto quando ele se aproxima. Eu me levanto enquanto os céus parecem se rasgar.
Nas primeiras vezes eu quase desmaiei de terror. Mas esta noite não terei medo. Não deixarei de olhar para ele. A nuvem sobre o véu negro incandesce e o trovão que só eu escuto se faz mais alto.
Seguro forte no meu cajado enquanto ele se aproxima.
Acho que esta noite morrerei.
Adeus Raquel. Adeus Léia.
Mas, não posso continuar sem a certeza de vou conseguir o perdão de meu irmão e o resgate do meu passado.
Ele chegou.
Hora de lutar.
Hora de morrer.
Corro ao seu encontro e seguro as suas vestes.
Quase não consigo vê-lo. Não me importa. Tenho coisas a lhe dizer. Muitas coisas...


Ele é forte como um exército, rápido como um raio. Depois de muitas batidas inúteis nele com o lado pesado do bordão o cajado maltratado se dezfaz como se atingisse uma rocha.
Na primeira vez que o atinjo com as mãos nuas tenho a nítida impressão que estaria me jogando sobre um portão de ferro, claro, se tivesse conseguido tocá-lo, pois na mesma velocidade que pulei fui agarrado, girado e lançado quase no meio do Jaboque.
Certamente morrerei.




Levanto-me no meio das águas e pergunto para que serve tanta força se não tinha condição de me atender. Caraca! tantas promessas, tantos sinais, tanto trabalho para minha vida se tornar lembrança debaixo da ira de Esaú. Minhas filhas lindíssimas, minha amada Raquel. Minha querida Léia. Eu ouvi tantas coisas nas noites frias cuidando das ovelhas. Eu vi tantas coisas fantásticas. Sobre a imortalidade. Sobre a a eternidade. E as promessas. O destino da humanidade, o futuro da terra e dos homens, sobre nações que viriam a existir milhares de anos depois que eu já não existisse mais. E crescia a absoluta convicção que aquela noite desgraçada e fria, lutando contra o mais poderoso ser que habitou os confins do universo, seria essa a noite.
Certamente morrerei.
Então quando me levanto das águas e corro como um suicida e me jogo sobre ele, tanto fazia o que haveria de ser. Porque viver sem respostas não é viver. E mais grave ainda, porque eu, mortal, cansado, limitado e dolorido homem podia receber dádivas, conforme as ditas promessas, se pudesse crer.
Ao memos crer que poderia convencer aquele mensageiro divino teimoso como um burro mal-criado, a atender a minha voz, que já ficava rouca pelo frio daquela noite gelada.
Foi quando aconteceu.
Já aguardava voltar para o meio do vau, ainda na queda sobre aquele sujeito teimoso e imortal. Mas não ocorreu. Eu o derrubei sobre as margens e caímos como dois bebados numa noite escura sobre as enlameadas margens do Jaboque. 
Certamente morrerei. Eu derrubei o exército feito de um só.
Ele partiu para cima de mim como um enxame de abelhas. Não sabia que homens podiam voar. Não digo dele, que já sabia do que era capaz de fazer,  digo de mim, sendo arrastado pelas orlas das vestes tocando os pés sobre a face das águas turvas e indo cair mais uma vez nas margens do riacho célebre.
Céus...o que esses seres comem... Mas então me perguntei...porque...como... o derrubei? 
Doia tudo. Mãos. Cabeça. Peito. Tornozelo. Braços. Metade do manto ainda afundava no meio do riacho.
Eu gritei para aquele enviado celestial, que não seria tão fácil assim. 
...Como se houvesse tal possibilidadea...

Haviam as tais promessas. 
E de algum modo nós dois sabíamos. 
Enquanto eu continuasse a lutar ele não poderia desistir. 
Levantei-me como se tivesse enlouquecido.
Na verdade havia.
Avançei sobre o enviado, a essa altura atônito.
Ele já atravessara o sol sem piscar os olhos nenhuma vez.
Ele caminhou sobre a face das águas pelos abismos das terras
Leviatãs marinhos não ousaram tocar-lhe quando assim o fazia.
E levantou sua mão para segurar a minha
Mão que poderia levantar o mundo
Mas que não pode a minha minha mão
...Sustentar...
Caímos novamente e assim foi pela noite inteira
Pela noite inteira.
O sol despontou no horizonte e ele olhou para mim ou para o que tinha sobrado de mim e disse:
Tenho que ir. Teu audiencia terminou.
Audiencia? 

Olhou para as alturas. Os céus se rasgaram mais uma vez diante do formidável. Mas ele não conseguiu se elevar.  Não tanto como de costume. Olhou para baixo no meio da tempestade e lá estava eu. Segurando as abas de suas vestes. 

- Porque você imagina, disse eu, que te deixarei partir, se não não me abençoares? 
Foi quando sua mão esquerda brilhou  queimando e causando uma dor  insuportável na coxa direita... e lá estava eu caindo mais uma vez, como de costume  nas margens do Jaboque.


Inclusive se eu sobrevivesse iria mandar aterrar aquele rio maldito.

Se.

 Acabou. 
Não poderia ser de outro modo. Homens não podem vencer a anjos.
Ele tocou suavemente o chão e caminhou como um rei em minha direção
Já não podia andar. 
Levanto um pouco a cabeça ensanguentada, ouço o estalar do meu pescoço.
Vai...termina logo com isso...pensei...


Ele olhou pra mim de um jeito estranho.

Se eu não soubesse quem ele era, diria que que era um olhar de admiração.
Qual é o teu nome? Ele perguntou como se não soubesse.



...Jacó...



Os raios caiam a minha volta e quando começou a chover.


Com tom grave e voz decidida ele estendeu a mão em minha direção. 
Então proclamou.

- Não. Não mais. De agora em diante e para todo o sempre,
te chamarás Israel.Porque como príncipe lutastes com Deus.


Ele ergueu-se admiravelmente diante dos meus olhos cansados. Jogou alguma coisa perto de mim. Caraca! Meu cajado estrupiado. Mais parecia uma bengala.
Enquanto ascendia as alturas ouvi sua ultima frase que soaria aos meus ouvidos como uma canção por todos os dias de minha vida.


- E vencestes...













Welington José Ferreira












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