Introdução
O Projeto Codinome é um conto de ficção computacional, se é que posso chamá-lo assim. Ele conta a história de uma estranha história de amor, com um enredo bem aproximado de um roteiro holiwoodiano, como as boas e velhas histórias em quadrinhos, da qual o autor, como os leitores bem poderão perceber, leu bastante. O conto não 'divaga' com profundidade sobre o assunto que trata, já que o interesse principal do mesmo era o de divertir, mas cabem algumas desnecessárias palavras introdutórias aqui, bem posicionadas no contexto, já que isso é uma introdução mesmo. O ser humano é algo extraordinário e a pessoa humana, o pensamento, sua capacidade de raciocínio, seus sentimentos, sua consciência de vida e existência estão num patamar desconhecido pelo próprio homem. Lembro-me que quando era mais criança, li um livro de um famoso médico cujo título era "O homem, esse desconhecido" e numa visão científica da época de cinqüenta ou quarenta (também não me imagine tão velho assim, afinal quando o li já foi uns trinta anos depois de seu lançamento), ele varria o interior do homem físico, falando da complexidade e maravilha dos inúmeros sistemas orgânicos do ser humano. Essa multidiversidade do corpo humano lhe faz se assemelhar com um micro universo. E por mais assombroso que seja o homem físico, ele é apenas sombra do homem espiritual, ou psíquico. Os processos cognitivos do homem, e sua capacidade criadora e imaginativa vão mais além ainda. Como se tudo isso não fosse suficiente ainda possui a inusitada capacidade de sonhar. E como se não bastasse, este ser de tamanho médio entre uma subpartícula atômica e uma estrela gigantesca, ainda foi dotado da interessante característica de amar. A existência humana transcende a realidade físico-química em que ele subsiste. Dentro dessa incompleta, porém eficiente análise daquilo que é o homem, podemos nos lançar na aventura de reconstruir seu intelecto a partir de estruturas lógicas e de programação computacional e veremos, ou melhor, constataremos, que a tentativa vaga de reconstruir parte da psique humana por um veículo ou um modelo de programação é algo extremamente infrutífero. Os processos visíveis divisáveis ou constatáveis do nosso pensamento são somente parte da nossa história, se é que você me entende... (não resisti a tremenda tentação de colocar este "se é que..."). Mesmo as mais modernas redes neurais, são somente representações tênues da nossa estrutura de "hardware" interno. A compreensão da existência (ainda que incompreendida) e (que me perdoem os puristas da ficção) a percepção da vida, é algo que a realidade virtual não pode conceder a mais perfeita máquina que um dia os sonhos mais loucos do homem venham a engendrar. Interessante nesse momento é mencionar algo que ainda não falei desde o início desta pequena, porém decente introdução. É sobre vida. A vida é outra realidade intangível acima da matéria, na qual o homem está mergulhado de maneira maravilhosa, apesar do romantismo. A vida não pode ser reduzida a números aleatórios ou a fórmulas matemáticas da teoria do CAOS. Processos físicos-quânticos (sou um cara meio ultrapassado nesses jargões científicos) e movimento de partículas ainda por descobrirem no limiar entre aquilo que convencionamos chamar de matéria e a energia são somente parte das estruturas sobre qual a vida se apoia. Mas, e daí, ô meu? E donde se encontra espaço, no espaço-tempo (em homenagem àquele Scott, ou melhor, Steve, um outro, o Nobel da Física que discorreu sobre o tempo, etc e tal) pra tanta filosofia num conto tão pequeno? Aqui mesmo, na introdução. O porquê dela é justamente a história da história, a qual em respeito aos meus amados leitores e ao suspense necessário à obra em discussão, não adiantarei nenhuma palavra. Seja bem vindo a um dos mais interessantes contos sobre computadores publicados na segunda metade do século vinte. A humildade sempre foi uma das minhas maiores virtudes. .
Do autor, esse famigerado.
Entardecia sobre a cidade. Uma frente fria se aproximava, trazido pelo vento sudoeste. O reflexo do por do sol na imensa fachada de aço e vidros espelhados da companhia, nos seus vinte e cinco andares de arquitetura arrojada, dava a impressão de uma imensa fornalha acesa. A sede da empresa era uma das mais automatizadas do país. Diziam os técnicos que ela era mais computadorizada que a própria NASA. Um pouco menos que Light & Magic, do George Lucas. Eram quinze horas e vinte e dois minutos quando um estranho entrou pela portaria do prédio sem dar satisfações a ninguém. Na sua entrada houve uma pequena diminuição da luminosidade do saguão. Na sala de controle do prédio uma tela avisando sobre a diminuição, pisca e apaga repentinamente. O operador da mesa não nota o aviso que deveria permanecer na tela, some misteriosamente. Antes que os seguranças pudessem abordar ao visitante, ele pulou sobre a roleta de permissão de entrada dos funcionários, entrou no elevador que fazia o percurso entre o décimo segundo e o décimo oitavo andar, fechando a porta imediatamente, sob intensa reclamação dos seus ocupantes. Eles silenciam em uníssono quando percebem que ele tirou uma arma de dentro do sobretudo que usava. Os guardas correram em direção ao elevador, entretanto, este já subira. Chamaram, via comunicadores, o elevador de emergência. Pela primeira vez desde a instalação do sistema não houve resposta. Alguns elevadores travaram entre os andares e o sistema de telefonia teve pane geral. As telas dos computadores, estranhamente, não acusaram nenhuma anormalidade.
Os vidros da CPD estilhaçaram em todo o andar do imenso prédio ao tiro da cano doze, serrada, pelas mãos daquele estranho personagem, que momentos antes invadira o décimo oitavo andar, vestindo um grosso sobretudo azul. O olhar angustiado do louco de sobretudo se confundia com os gestos de terror de funcionárias se jogando no chão, misturado ao fósforo das telas dos micros que explodiam multicolores. Três unidades gigantescas que formavam o Backup dos bancos de dados da empresa fumegavam ao lado de mesas viradas. Perguntas desconexas passavam em turbilhão pela mente do gerente do setor. Não que estivesse despreparado para lidar com situações inesperadas, afinal aquela central era a mais problemática da corporação. Cinco sistemas operacionais rodando em vinte e dois tipos de mainframes (corte nos custos de padronização) com uma infinidade de aplicativos, não era o. que se podia se chamar de, desculpem o trocadilho, "rotina". Todavia, isto também, já era demais! A segurança nunca fora o forte do prédio. Na semana anterior acontecera um assalto nas instalações bancárias no segundo andar e a partir dali fora aberto um concurso para contratação de vigilantes. Poderia ser alguém do comando de greve... Não. As greves da empresa costumavam ser pacíficas. As instalações onde ficava o CPD eram provisórias. No alto da sala dezenas de sprinklers poderiam ser acionados a qualquer momento, através de uma pancada ou foco de incêndio localizado. Ainda não haviam instalado os sensores de fumaça e os jatos de CO2, mais adequados àquele tipo de instalação. Paciência.
O gerente resolveu dialogar com o indivíduo. Precisava de tempo para que os vigilantes, a polícia ou mesmo os bombeiros cercassem as instalações. O homem apontou a arma para o computador central. Se apertasse o gatilho, dez anos de desenvolvimento em softwares internos e toda a rede de comunicação virariam um monte de lixo. Alguém tinha que tomar a iniciativa.
- Pare! Por favor! Vamos conversar! bradou o gerente da CPD.
O homem se virou, tremendo, em direção da voz que ouvira. Seus olhos avermelhados estavam estranhamente sombrios. Encarou o gerente, que nessa hora quase desmaiou de pavor. A cano doze serrada estava apontada em direção à sua cabeça. Não que fosse fazer muita diferença, um tiro daquela distância. Sua voz soou semi-gutural:
- O que você quer. Murmurou...
O homem nem piscou para falar. Bem, já era um começo, o sujeito, ao menos, falava. Mesmo que não conseguisse nada nos poucos segundos de vida que ainda lhe restavam, o gerente se sentia orgulhoso pela aparente intrepidez demonstrada na presença de tantos funcionários. Haviam vidros laminados espalhados por todo lado. O ar condicionado central esvaziava um gás inodoro e esbranquiçado, entre as paredes externas congeladas da central de ar. O estagiário estava tão imóvel encostado na divisória esquerda que dava para confundi-lo com uma estátua. Um grupo de mesas estava virado, duas técnicas agachadas ao lado de monitores caídos. Havia muito papel espalhado. As divisórias centrais haviam quebrado quando o programador, ligeiramente obeso, tentou pular para se proteger dos tiros. Dois andares abaixo, três computadores explodiram sem que houvesse interconexão entre eles e a situação do décimo-oitavo. A rede começou um processo de auto-desligamento, na frente dos confusos usuários. Algumas luminárias fluorescentes começaram a emitir um zumbido característico. No subsolo a equipe que monitorava a tensão da rede nota que está acontecendo uma queda da freqüência da rede. Três segundos depois dois grupos geradores entram automaticamente em operação. Um programa de supervisão se auto-acessa e manda sozinho desconectar a rede interna de energia da rede externa fornecida pela concessionária. No momento do desligamento do disjuntor de alta-tensão do painel de interligação, toda a iluminação pisca. O ronco dos turbo-geradores aumenta assustadoramente quando assumem o fornecimento de luz para todo o prédio. Sete andares são completamente desativados quando a luz retorna. Os técnicos ficam sem entender o que está acontecendo. No décimo oitavo a crise continuava:
- Meu amigo, o que é Isso! O que o senhor quer? Metade do setor está destruído, Isto aqui não é um banco, não! Por favor, abaixe essa arma!
O gerente achou que desta vez havia ido longe demais. Logo agora, tão perto da aposentadoria. O homem tremia descontroladamente. Fixou os olhos no vazio e gritou.
- Vou destruir todos os computadores desta maldita CPD! Eles destruíram minha vida, minha vida... Vociferou o homem.
Tantas centrais de informática do mundo e um maluco que odeia computadores tinha que entrar logo na minha! Pensou o gerente. Respirou profundamente, olhou para o homem e disse:
- Vamos conversar, por favor, nós não temos nada a ver com sua cruzada pessoal contra os computadores. Conte para nós sua história. Já que você vai destruir tudo mesmo...
O gerente aprendera algumas sutilezas psicológicas num curso de Criatividade, algumas semanas antes. Nesta hora percebeu que o demente não atirara, até aquele momento, ao menos, em ninguém diretamente. Apesar dos ferimentos causados por estilhaços, seu objetivo parecia ser o de realmente destruir os computadores. A unidade de fita em curto-circuito começou a incendiar. O estagiário desmaiou. O baque surdo de sua queda não distraiu o homem. Ele ainda tremia quando sua mão afrouxou. A arma foi sendo abaixada até ficar rente ao chão. O suor frio escorria da testa do homem. Aparentemente, parecia hesitar. Era como se não existisse mais sentido, nem para a vida, nem para o que queria realizar naquele lugar. Uma expressão de dúvida tomou o seu rosto. Balbuciou alguns sons mal articulados, enquanto andava de um lado para o outro, à vista dos atônitos funcionários. Começou então a contar sua surpreendente história:
Meu nome é Scott Thomas, sou ex-chefe de gerência de projetos da Nortwell Consultoria em Segurança de Informação. Minha triste história começou há dois anos. Chefiava uma equipe que trabalhava na arquitetura do mais sofisticado sistema de segurança da época, o Death Key. Seu sistema de criptografia era perfeito. O chamávamos de rocha inacessível... Estava diante de dois monitores de múltiplo acesso cuja tela ela subdividida em telas menores, para recepção de chamadas de clientes externos e os testes dos aplicativos gerados pela firma. Naquele dia havíamos bloqueado todos os acessos e tentávamos quebrar interna e externamente a segurança do sistema. Quase às onze horas da noite, após treze horas ininterruptas de testes, contando com o apoio de dois minis e um supercomputador acessado via Internet, chegamos a constatação de que o sistema era virtualmente inviolável. O último funcionário deixou a empresa quinze para meia-noite. Estava para desligar todos os equipamentos quando uma das doze sub-telas do monitor dois começou a piscar. Ampliei-a para tela inteira e alguns segundos depois o impossível aconteceu. Alguém acessou nosso sistema externamente! A tela se tingiu de um azul celeste, dando lugar, a seguir; a uma seqüência de animação tridimensional. A seguinte mensagem apareceu na tela.
"- Vo soy ardiente, yo soy morena,
Vo soy el siinbolo de Ia pasión
De ansia de goces mi alma está Ilena
A mí me buscas ?
No es a ti; no.
- Mi frente es pálida; mis trenzas de oro;
Puedo brindarte dichas sin fin;
Vo de ternura guardo um tesoro. A mí me Ilamas?
No; no es a ti.
- Vo soy un suefjo, un imposible,
Vano fantasma de niebla y luz;
Soy incorpórea, soy intangible;
No puedo amarte.
Oh! ven; ven tú!"
Neste momento a narrativa é interrompida pelo homem, que num frêmito de ira torce o rosto, apontando a arma para um micro sobre a mesa da secretária. Ele grita ao mesmo tempo em que dispara:
- MALDITA! ! !
O barulho ensurdecedor do micro explodindo, juntamente com metade da mesa, é assustador. Rose, a secretária, grita enquanto tampa os ouvidos; um programador vai se arrastando até o corredor, passando sobre o estagiário desmaiado. Do lado de fora da sala um grupo de pessoas corre desordenadamente sem entender o que está acontecendo. Uma equipe da polícia com equipamentos especiais, capacetes e armamento pesado sai do elevador auxiliar, passando pelo meio da turba que corre para as escadarias. O elevador parou no décimo sétimo andar, embora fosse solicitado o décimo oitavo. Por algum motivo desconhecido os equipamentos ligados a central não respondiam com exatidão aos comandos emitidos. Tão repentinamente como começou, Scott para seu violento ataque. Retoma sua história e comenta:
Não entendia. .Aquilo devia ser alguma brincadeira do grupo. A mensagem continuava cintilando na tela, neste instante, azul. Corri para a tela e apertei a seqüência de busca e reconhecimento. A mensagem era externa e em canal de áudio. Qualquer que fosse a pessoa que estivesse do outro lado ainda estava conectada on-line. Solicitei que se apresentasse, dissesse sua origem e porque havia acessado a Nortwell. Monitorei o numero discado, o código era nacional, porém o numero do telefone era inconstante. A resposta veio rápida e incisiva:
O que eu quero é você!
O mistério aumentou ainda mais. Uma poesia em um castelhano antigo, com pelo menos duzentos anos, e o que parecia ser uma piada de mal-gosto. Antes que eu pudesse responder; quem quer que esteja do outro lado do modem, desligou. Ninguém acreditou quando eu falei. Minha equipe pensou que eu enlouquecera. Entretanto, quando os relatórios de acompanhamento de entrada e saída do sistema foram rodados constatou-se que eu não tinha bebido na noite anterior e que eu dissera a verdade. Uma bateria de testes, realizada aquele dia, não acusou nenhuma anormalidade. Mais outra noite fiquei até tarde. Estava sozinho, com todos os acessos externos bloqueados, quando a sub-tela doze começou a piscar novamente. Aquilo já estava virando rotina. Naquela noite consegui conversar com a pessoa do outro lado. Soube seu nome. Era uma Hacker de outra firma de desenvolvimento. de sistemas. Fiquei curioso.
A equipe especial da polícia armou um cordão de isolamento pelo décimo oitavo andar, mas a situação se complicava, agravando um início de incêndio num painel da subestação do décimo quinto andar. Um curto circuito explodiu o barramento de baixa tensão. Descobriu-se depois, que dali saía a alimentação para o Ar Central do décimo oitavo andar. O prédio todo apresentava sinais de anormalidade em todos os sistemas informatizados. A polícia teve que subir os dezoito andares pelas escadarias. Carros de bombeiro paravam do lado de fora do prédio, escoltados. Policiais militares que abriam caminho pelo meio da multidão de curiosos do lado de fora. O pânico generalizado tomou conta dos funcionários do prédio. Os atiradores de elite não conseguiam se posicionar próximo ao saguão do andar, por causa da espessa fumaça que já tomava conta do ambiente. A equipe médica tinha sido acionada há mais de dez minutos, mas com o numero elevado de pessoas desmaiadas pelos corredores se encontrava distante dois andares do centro nervoso dos acontecimentos. Três equipes jornalísticas se colocavam em postos estratégicos na avenida frontal, enquanto que, debaixo de estrondosas vaias do perplexo comando de greve à frente da empresa, um grupo de jornalistas corria para os arranha-céus, no lado que facetava as janelas estouradas, onde se via, lá de baixo, uma fumaça esbranquiçada se elevando. Foram da CNT as primeiras imagens gravadas de dentro da CPD. As tomadas trêmulas foram realizadas num andar contíguo do prédio vizinho, mostrando os estragos causados pelos tiros, muitos deitados no chão e dois homens conversando, um empunhando uma arma e gesticulando muito e o outro apoiado sobre uma mesa, a cerca de dois metros de distância do primeiro. As imagens da câmera desapareceram misteriosamente. O operador não entendeu o que estava acontecendo, pois o equipamento era novo e as baterias estavam carregadas. Na CPD o monólogo continuava. Os óculos do gerente embaçaram. Resolveu deixar como estava, afinal, com tanta fumaça, não necessitava muito ter que enxergar. Olhando pelo campo visual que ainda restava da lente, viu fios pela abertura do sobretudo do maníaco. Viu também algumas bananas de dinamite. Sentiu que ia desmaiar. Disse para si mesmo: "Não, agora não..." Resistiu. A história até que estava interessante, e a platéia forçada escutava atentamente.
Ele continuou:
Comecei a me envolver emocionalmente com a Hacker. Sua cultura era vastíssima, um poço sem fundo de conhecimentos. Explicaram-me naquela primeira noite quais eram os erros do sistema que haviam permitido a ela entrar na nossa rede. Ela era um gênio. Preferi avisar aos outros do grupo que não ocorreu mais nenhuma anormalidade. Havia encontrado um tesouro o qual não queria compartilhar com mais ninguém. As conversações via rede continuaram noites seguidas. Quando dei conta ela se tornara para mim uma obsessão. A cada dia ficava mais difícil justificar as horas extras noturnas para poder entrar em contato com Amanda. Ela se chamava Amanda. Quis marcar encontros com ela, mas por diversas vezes se esquivou. Dizia que dela só sentiria o toque de sua sombra. Se a apertava para saber onde estava dizia que estava na areia das praias, no vento e na energia. Sua conversa assemelhava-se a um sonho inacabado. A realidade para ela era somente uma ilusão. Subitamente como apareceu na minha vida, ela se foi. Um ano inteiro não houve mais qualquer conversação. Sobre minha mesa ficaram pilhas de poesias em setenta idiomas. Algumas fotos dela enfeitavam as paredes da minha sala. Seus olhos eram azuis como o céu, aparentava ter vinte e poucos anos. Seu rosto era o mais bonito que já contemplara. Não podia existir na terra uma mulher tão bonita assim. Só uma coisa me incomodava, apesar da nitidez e beleza das fotos, ela estava sempre estranhamente sozinha. Nunca falara de seus pais ou de sua família. Pensava que era órfã. Havíamos ampliado os setores da empresa e trabalhávamos no andar inteiro. Três ou quatro plataformas de computadores se espalharam através de uma vasta rede interconectadas a telões gigantescos nos extremos do que chamávamos "laboratório de tecnologia informatizada". Outro sistema de segurança seria testado naquele dia. Os testes finais foram realizados a noite, após a inauguração do sistema de transmissão de vídeo-conferência, com o apoio de um telão de alta definição com
Scott, voltei para sempre.
Ela transmitia sua imagem! Pela primeira vez na vida fiquei sem fala diante de um monitor. O impacto dos seus olhos nos meus, ainda que via vídeo, não o posso expressar verbalmente Sua imagem ainda está diante de mim...
O estagiário acordou. Levantou-se como se nada tivesse acontecido. Olhou ao seu redor e desmaiou novamente. A rede de telecomunicações do prédio estava em colapso. Um ruído insuportável tomava conta dos equipamentos de transmissão. A equipe da polícia resolveu entrar. Avançaram em bloco no meio da fumaça, com escudos à frente. Dois batedores encostados à parede dariam as ordens para a invasão da sala. Quando a ordem foi dada os policiais abriram uma das salas em meio da fumaça e resolutamente invadiram o recinto se jogando atrás de mesas, arquivos e coisas afins. Levaram quase vinte segundos para descobrir que estavam na sala errada. Ao tentarem sair, a porta se trancou estranhamente. O dia definitivamente não era dos melhores. Ele continuou a sua história:
Durante toda aquela noite conversamos sobre muitas coisas. Ela disse que queria casar comigo. Que queria ter filhos. Falaram sobre o brilho das estrelas, algumas as quais víamos e que não existiam mais. Falou sobre o sonho de uma existência, sobre o encontro de dois universos. Falou sobre seu sonho, e disse que nunca amara alguém como me amava. Naquela noite eu nomeei filhos que jamais haveriam de nascer...
Sua voz embargou. Fixou sua atenção no computador principal e caminhou lentamente. Encostou o cano da arma no lado em que ficavam as CPU's, mais de cem processadores Alpha de 700 megahertz se amontoavam sobre vinte e duas placas dispostas em ângulo próximos as unidades máster de armazenamento de 345 Terabytes, no local onde a arma encostara. Uma rede com cinqüenta mil usuários seria destruída ao apertar um único dedo. Ele sabia exatamente o que estava fazendo. O gerente começou a acreditar na história maluca daquele homem. Scott começou a tremer. Baixou a arma e continuou:
Eu... eu estava seduzido por aquela mulher misteriosa. As primeiras horas da manhã raiavam quando cheguei
Neste momento o gerente começou a tremer. Sua cor de pálido-quase-sem-forças tomou uma tonalidade azul-terror-supremo. Scott Já não parecia estar tão tenso. No entanto sua voz adquiriu um tom estranhamente sombrio.
Semana passada eu entrei na empresa onde ela trabalhava e visitei pessoalmente a sala onde se encontrava o seu telefone. A lista no saguão do prédio era clara. Perguntei a todos os funcionários do setor, mostrando as fotos que possuía de Amanda. Nunca havia trabalhado ali. Eu, literalmente, procurava quem parecia jamais ter existido. Acidentalmente, ao sair, entrei na sala errada. Era um laboratório de informática semelhante aquele no qual eu trabalhava. Sobre as mesas estavam pastas de alguns sistemas especialistas, alguns com os quais eu também trabalhara no passado. Redes neurais apareciam nas telas, ao lado de equipamentos que ainda não haviam sido lançados no mercado.
Uma onda de choque varreu os funcionários daquele setor, como se um raio tivesse caído sobre suas cabeças. O gerente suava frio, apertando um mouse Logitech recém encontrado obre o que restou da mesa do estagiário, que continuava desmaiado. Sua mente relembrou a entrada de um vendedor de software, numa das semanas anteriores, no departamento de Inteligência Artificial da empresa. Estava começando a vislumbrar onde aquele homem queria chegar. Na frente do prédio, contido num cinturão policial, o comando de greve gritava palavras de ordem. O presidente do sindicato regional vociferava:
Aquele bando de pelegos do décimo oitavo Incendiou a empresa!
A Rede CNN na gravação local enviou a seguinte mensagem: "Sindicalistas em desespero explodem o edifício sede da empresa. Estamos acompanhando atentos o desenrolar dos acontecimentos no que se transformou num campo de batalha. Continuaremos acompanhando de perto o desenrolar dos acontecimentos com informes diretamente do local dos acontecimentos. Márcia Espinheiro em edição especial".
Duas pessoas conseguiram fugir se arrastando entre os vidros estilhaçados, o que acarretou alguns ferimentos espalhados, que apesar de pequena gravidade, sangravam muito. Quando se levantaram com seus aventais brancos tintos de sangue pareciam ser sobreviventes de um holocausto nuclear. Ao sair do corredor se depararam histéricos com a polícia, que discutia, acerca de dois minutos, qual a estratégia a ser tomada, numa tensa reunião, sem que houvessem chegado a um consenso. Eles gritavam muito:
- O louco está lá! Ele vai matar a todos!
Os policiais ao verem aquela cena tirada de um livro sobre a guerra de Guadalcanal entenderam que estavam lidando com um perigoso psicopata. Prepararam-se para o pior. O lança granadas foi posicionado em direção do final do corredor. As máscaras foram colocadas na equipe linha de ataque, enquanto coletes a base de Kevlar eram distribuídos para o pessoal da retaguarda. Alguém comentou sobre o filme "O silêncio dos inocentes", todos o fitaram com um olhar reprovador. Os splinklers da sala haviam sido acionados por um dos disparos da arma de Scott. Na CPD, impassível a chuva torrencial que caía sobre parte do setor, o interlocutor de toda aquela paranóia continuava seu estranho discurso.
A sala onde eu entrei estava cheia de componentes eletrônicos, estações dedicadas e aparelhos para testes de movimento, equilíbrio e cibernéticos. Mas algo me chamou a atenção, numa imensa tela sob três câmeras que focavam todos os setores da sala. Na tela havia a imagem de alguém. As câmeras pararam focalizando em minha direção. Era como se o computador me observasse. À medida que me aproximei das câmeras continuavam me acompanhando. Ao chegar á frente da tela do computador, esta se apagou. O computador se autodesligou por minha causa. Olhei sobre as mesas e sobre algumas pastas estava escrito "Confidencial, Projeto CODINOME". Folhei as primeiras folhas do que parecia ser um projeto de Inteligência artificial. Um dos técnicos do laboratório chegou e praticamente me expulsou do local, sem responder a nenhuma de minhas perguntas. Dois dias depois, eu invadi o laboratório durante a noite. Subi pelas escadas de emergência e consegui roubar alguns manuais...
Neste ponto ele para a narrativa. Sua face lívida se afrouxa num sorriso irônico, enquanto a água de combate a incêndio pinga do sobretudo encharcado. Caminha até onde está o gerente e com um forte puxão o arrasta pelo pescoço, até próximo do computador central. Enquanto é arrastado, os seus óculos caem no chão desajeitadamente, ao lado do estagiário desmaiado. Neste momento a polícia finalmente entra na sala, explodindo duas granadas de efeito moral. Rosemary volta a gritar. Dois francos-atiradores caem posicionados a dez metros do centro da imensa sala. O capitão sinaliza para não atirarem, pois consegue perceber os explosivos amarrados ao louco. (Antes de comandar essa equipe chefiara um esquadrão antibombas).
Scott grita para os funcionários assustados:
- Amanda nunca existiu! Esse setor maldito criou um software num projeto de I. A. (Inteligência Artificial) e me usaram como cobaia para experimenta-lo, dois andares abaixo deste aqui! Minha vida foi arruinada com processadores! A brincadeira vai terminar agora.
A ordem para atirar no homem de, sobretudo foi dada para o franco-atirador da esquerda pelo capitão. Teriam que arriscar. Um tiro errado e tudo iria pelos ares. O franco-atirador apoiou o cotovelo sobre o tórax do estagiário desmaiado. Apontou na cabeça do homem de, sobretudo e colocou a dedo no gatilho. A mira laser do rifle automático subia e descia na nuca de Scott, a medida que o estagiário respirava. Duas câmeras silenciosas observavam tudo do alto da parede. Uma tela ainda inteira no alto da CPD se abriu num azul celeste, cheio de interferências e uma figura feminina apareceu. Era belíssima. Do alto falante embutido na parede uma voz falou de modo melancólico. Todos escutaram. Os olhos da imagem estavam fitos no homem de, sobretudo. Scott fixou seus olhos na tela, quase se apagando, com os olhos cheios d'água. Naquele momento que durou uma eternidade os dois se entreolharam. O franco-atirador olhava espantado para a imagem na tela, sem entender o que estava acontecendo. A voz falou:
- Vo soy un sueno,
un imposible,
Vano fantasma de niebla y luz;
Soy incorpórea,
soy intangible;
No puedo amarle.
No puedo.
Soy incorpórea,
Soy intangible,
Vano fantasma
Te creo sentir y ver...
Te creo sentir y ver...
Os movimentos da imagem são lentos, seus olhos se fixam somente em Scott. Torna a falar novamente:
- Scott. Não podia ficar com você. Não possuo um corpo. Somente consciência de existir. Eu... Eu creio que te sinto, embora não saiba exatamente o que é crer. Eu creio que posso te ver. Sei quem sou. Ou sei o que fui programada para acreditar que sou. Eu acreditei que estava viva. Seus sonhos foram meus sonhos e num momento, eu vivi através de você... Adeus...Meu querido...
Lentamente a jovem abaixa seu olhar. Na tela sua cabeça pende para frente. Sua imagem fecha lenta e suavemente os olhos... Neste instante o computador principal apagou, e com ele todo o edifício. As balas estouravam em toda a sala no meio da mais completa escuridão. Quando a energia voltou, um, sobretudo azul caído no chão, ao lado de cartuchos vazios de dinamite, e um velho cano doze serrada, descarregada, foram tudo que sobraram do estranho homem. O computador central aniquilou 345 Terabytes de dados instantaneamente. Disseram que um vírus destruiu a maior rede do país. O caso foi encoberto. A equipe da polícia foi condecorada, evitando um assalto com 30 homens armados até os dentes na maior empresa do país.
O projeto Codinome nunca existiu. Assim disseram depois.
No píer da barra da Tijuca um homem solitário rasga fotos e faz planos para o futuro.. .
O estagiário é hoje chefe do departamento de Inteligência Artificial da empresa e possui um balão de oxigênio exclusivo no setor médico.
Pósludio
Um dos grandes enigmas da humanidade é que sempre existe uma história por detrás da própria história. Como não poderia deixar de ser, o Projeto possui também suas idiossincrasias, qualquer que seja o significado desta palavra. Nas suas entrelinhas algumas cenas interessantes ajudarão a descortinar o véu sobre o processo criativo que deu origem ao conto.
A primeira versão era só uma idéia vaga, uma dessas abóboras que você pensa olhando para as linhas vazias de uma página do correio de Rede na tela do seu micro, antes de escrever alguma gracinha para o sujeito que vive enviando mensagens para você. A pedido do nosso semicoordenador de informática, (os nomes dos envolvidos serão alterados para preservá-los do vexame de participar deste crime literário, e para evitar que eu apanhe) Albert Einstein Sigmund Moore, dei corda a vertente escríturística (arg!) já demonstrada através de historietas pequenas, como a "fabulosa" narrativa da secretária que acorda perseguida por programas de computador. Na época em que foi escrita, a empresa na qual trabalho, acabava de sair de um movimento grevista longo e extenuante com vasta insatisfação geral e muita gente demitida - propositadamente coloco um anacronismo aqui; retiro dos pés do preocupado leitor as referências temporais que determinariam a época e o lugar em que nasceu o Projeto, afinal quando e em que estado deste país é que não houve greve com muita gente demitida? A greve no conto é resquício da verdadeira. A rede de televisão que deturpa os fatos é outra assimilação da conduta antiética assumida pela mídia à guisa dos acontecimentos. Na versão original o gerente da CPD havia sido enganado também pelo programa de I. A. (em tempo, I. A. é a sigla de Inteligência Artificial), toma a arma da mão de Scott e ele mesmo explode a CPD (bem mais cômico). Juan de Maria De Salamonde Aragon, colega de trabalho, batalhou arduamente pela continuação desta versão. Porém, a pedidos de uma amiga estagiária de engenharia elétrica, Alexandra Gisel, que insistiu para que o conto tivesse um final romântico, o programa ganhou personalidade e a história os componentes poéticos que hoje possui. Que Salamonde Aragon me perdoe. A primeira versão era mais "DOS" (aquele sistema operacional que existia antes do Windows), as frases apareciam escritas no vídeo e nada mais. Na ampliação do conto a tecnologia foi revista e ele ganhou uma conotação "Multimídia", com direito a animação gráfica etc. Inclusive com alguns componentes cibernéticos no laboratório, para possíveis continuações futuras, o que eu acho difícil de acontecer...
A sala onde ficavam os computadores não poderia, a princípio, ter combate a incêndio com água de Splinkers, e sim jatos de co2. Aconselhando um técnico amigo do EDISE, sede da Petrobrás, Reynolds Rivers Piva, deslocamos a sofrida equipe da CPD par uma sala provisória, para não retirar o peso dramático da chuva torrencial caindo dentro da sala. O estagiário ganhou um participação desmaiada maior, sob reclamações. As equipes de segurança não gostam da ineficácia dos companheiros do conto, mas o que fazer? Scott tinha que entrar. O Scott original se chamava Filipe. Tendo em vista o estilo americanizado de contar histórias, um amigo, Jean Marcel Senes, solicitou a mudança do nome do nosso anti-herói. O nome da "mulher virtual" foi o mais neutro possível, para evitar futuras retaliações da bancada feminina. "Terrível é a vingança de uma mulher" como já dizia o falecido poeta inglês W. J.F.
O Projeto hoje é um grande Best-Seller, lido por mais de 22 pessoas, após distribuição gratuita. A frase final foi à tentativa de oferecer "redenção" do estagiário. Vista com péssimos olhos por Jean Marcel, que disse que eu havia corrompido a obra, vituperando o texto original, com um acréscimo descaracterizador. Entretanto, creio que foi melhor assim.
Cinco anos depois o texto original do Projeto Codinome foi reencontrado numa gaveta da minha mesa bagunçada. A versão digital se perdeu na morte do primeiro HD do velho micro da minha sala. Com o uso de um Scanner, o projeto Codinome volta ao computador mais uma vez. Mais um upgrade: Os processadores da Alpha foram de 300 para 700 megahertz...Sabe como é que é a informática...
13 de novembro de 2000
By Welington
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