A ética dos esquimós
A cooperação tem sido o maior valor das comunidades das terras geladas do Alasca, onde a cultura iñupiaq há milhares de anos se alimenta de caça e de virtude
A cooperação tem sido o maior valor das comunidades das terras geladas do Alasca, onde a cultura iñupiaq há milhares de anos se alimenta de caça e de virtude
Quando uma baleia é caçada, todo mundo trabalha para trazê-la até a costa, todo mudo ajuda: para levantá-la no gelo, no corte, e na distribuição de carne para a comunidade (Foto: Luciana Whitaker)
Quando saí do Rio, em abril de 1996, de férias do meu emprego de chefe da Fotografia da sucursal carioca da Folha de S.Paulo, não tinha idéia de que minha vida iria mudar totalmente. Escolhi uma viagem inusitada, é verdade. Levei minha câmera, lentes e fui, sozinha, para a ponta extremo norte do continente americano, onde os esquimós ainda caçam baleias tradicionalmente em pequenos barcos, movidos a remos feitos de madeira coberta de peles de foca. É caça de subsistência, distribuída entre todos que ajudaram.
Quando eu era pequena, meu pai me chamava de esquimó, pois quando eu sorria minhas bochechas altas fechavam meus olhos. Ainda fecham. Desde então sempre quis conhecer esse povo do gelo. Minha oportunidade estava ali. Não tinha filhos, havia terminado um namoro, ganhava bem. Podia escolher as férias e o Alasca foi o lugar escolhido para passar o mês.
A ponta Barrow é uma restinga de areia onde são jogados os ossos de baleias caçadas no outono. Os ursos polares chegam do mar, nadando, para conferir se ainda existe uma ou outra sobra de carne nos ossos. A quatro quilômetros dessa ponta está uma cidade pequena com o mesmo nome e 4.500 habitantes, a maioria esquimós da etnia iñupiaq, palavra que significa “povo de verdade”. A região é considerada um deserto. Não existem árvores. A única vegetação é a tundra, uma espécie de grama do frio. A terra não dá frutos. A comida do esquimó vem mesmo da caça de animais e a mais importante delas é a da baleia.
Queria fotografar essa caça, mas não é fácil chegar ao acampamento dos baleeiros. É preciso conhecer alguém envolvido na caçada. Acontece que no meu primeiro dia na cidade conheci um belo rapaz, chamado Kelly, de cachos louros e olhos azuis que pagou minha passagem no ônibus. Tinha entrado com dinheiro e não havia trocador, o motorista só aceitava fichas compradas sei lá onde.
Ele achou engraçado eu não saber dos costumes locais e aproveitou para me contar
vários deles no trajeto. Depois que saltei, descobriu onde eu estava hospedada e me procurou. Três meses depois nos casamos. Na lua de mel engravidei de um menino, James, também chamado de Sakiq, e três anos depois tive uma menina, Juliana, mais conhecida no Alasca por Amayun, seus nomes esquimós.
Kelly foi morar lá aos 10 anos por causa de um emprego de seu pai, piloto de avião. Aos 14, a família foi para outro emprego em outro estado americano. O menino resolveu que ficaria por lá, com a família de esquimós de seu melhor amigo, os Edwardsen. Era mais um entre 12 filhos e foi informalmente adotado por essa família generosa. E eu também fui. Acabei vivendo lá, como uma esquimó, por oito anos e há quatro moro com meus filhos entre o Rio de Janeiro e Barrow. Temos uma casa aqui e uma lá. Kelly morreu em março de 2006, após uma crise de pancreatite. Os Edwardsen são minha família até hoje.
Humildade: grande talento
A caçada das baleias não me deu só uma família enorme e querida. Ensinou-me muito sobre a vida e de como viver em sociedade. Não foi fácil aceitar essa caça. Eu não como carne por amor aos bichos. No Brasil a gente cresce escutando “Salvem as baleias”. Mas em Barrow, as baleias alimentam uma cultura belíssima, física e espiritualmente. Caçar uma baleia é trabalho para muita gente. Os caçadores precisam de roupas quentes para enfrentar semanas acampando no gelo. As mulheres costuram as roupas de peles para eles, cozinham as comidas para levar, ficam em casa com o ouvido no rádio VHF para qualquer necessidade que possam ter.
No inverno, o gelo da calota polar cola na praia. Na primavera, a uns cinco quilômetros da costa, o gelo se rompe como um rio e as baleias passam por essa
abertura. Os caçadores ficam esperando em silêncio na beira do gelo, ao lado do barquinho a remo, a postos com o arpão. Se uma baleia passa perto, eles remam silenciosamente até ela e arpoam. Existe uma quota de 22 baleias ao ano para Barrow. Uma baleia arpoada entra na conta mesmo se for perdida. Claro, a idéia é não perdê-la. Depois da arpoada certeira, a equipe avisa pelo rádio suas coordenadas. Outros barcos vêm ajudar.
Humildade é um dos grandes talentos dessa gente, que viveu anos em terras extremamente frias. Se querem sobreviver, têm de trabalhar juntos, conviver em paz e cooperar uns com os outros. Trabalham juntos para fazer coisas que não conseguem fazer sozinhos. Há milhares de anos a cooperação tem sido o maior valor que o povo iñupiaq usa para sobreviver. Quando uma baleia é caçada, todo mundo trabalha para trazê-la até a costa, todo mundo ajuda: para levantá-la no gelo, no corte e na distribuição da carne para a comunidade. O trabalho de corte pode durar a madrugada inteira. A alegria é tão grande que você quer estar ali.
Até as grandes corporações esquimós estão empregando esse valor na execução de negócios do dia-a-dia. Perceberam que isso dá mais força às negociações. Os esquimós usam essa sabedoria em suas vidas e fazem questão de transmitir às gerações seguintes. Todo mundo que ajudou na caça, seja costurando, seja cortando ou mesmo servindo no dia seguinte na casa do capitão, ganha bons pedaços da carne, que dura até a próxima temporada de caça. As 22 baleias que os esquimós de Barrow têm direito a caçar por ano, alimentam a cidade inteira. A carne também é distribuída na casa do capitão, em duas festas no verão, como grandes piqueniques ao ar livre abertos a quem quiser participar e nas igrejas no dia de Ação de Graças e no Natal. Eles acreditam que as pessoas que repartem o que têm, têm mais do que as pessoas que não compartilham. Compartilhar é fundamental para suas vidas, seja por intermédio do trabalho ou na liderança nas vilas. Todos se ajudam, são como uma grande família. Sabem que, por meio da compaixão, uma pessoa pode fazer sua vida valer a pena e ser respeitada.
Desde quando os iñupiaq começaram a viver no Ártico, a cultura girou em torno da caça. As caçadas fazem com que o esquimó dê o melhor de si, e é ensinado a não esgotar seus recursos naturais, mas a tratá-los como seu próprio jardim.
“Respeite-o e serás respeitado”, dizem. Na mais simples tradução da ética ensinada por Aristóteles há quase 2.500 anos, “não faça com os outros o que você não quer que façam com você”, a natureza é o que dá sentido à vida esquimó.
Depois de ver tudo isso entendi como a baleia é fundamental para esse povo. Eles são os primeiros a querer conservar a espécie. Os números da população de baleias cabeça-de-arco está crescendo com o passar dos anos e esse tipo de baleia não está em risco de extinção. Nunca imaginei um dia ser a favor de uma caça de baleias... E quem somos nós para achar isso uma violência? Nós, que vivemos em cidades grandes, no meio de tanto individualismo e violência, esta sim, selvagem. A gente devia aprender com os esquimós a conviver em comunidade. É um povo que sempre viveu sem guerras.
Não foi fácil aceitar a caça No Brasil a gente cresce escutando “Salvem as baleias”. Mas em Barrow, as baleias alimentam uma cultura belíssima, física e espiritualmente. Caçar uma baleia é trabalho para muita gente. Os caçadores precisam de roupas quentes para enfrentar semanas acampando no gelo. As mulheres costuram as roupas de peles para eles
Não foi fácil aceitar a caça No Brasil a gente cresce escutando “Salvem as baleias”. Mas em Barrow, as baleias alimentam uma cultura belíssima, física e espiritualmente. Caçar uma baleia é trabalho para muita gente. Os caçadores precisam de roupas quentes para enfrentar semanas acampando no gelo. As mulheres costuram as roupas de peles para eles
Renda básica
Todo morador do Alasca, inclusive criança, ganha um cheque de aproximadamente US$ 1.600 por ano – desde que tenha vivido lá por um ano inteiro. Esse dinheiro vem de um fundo formado por royalties provenientes da exploração dos recursos naturais. O Alasca é rico em petróleo. O fundo permanente é exemplo pioneiro de renda básica de cidadania. Kelly e eu usávamos nossos cheques para viajar ao Brasil todos os anos. Queríamos nossos filhos bem brasileiros. Os cheques das crianças foram poupados para, um dia, pagar a faculdade. Alguns compram motos para a neve para caçar e prover a carne de subsistência. Capitães de equipe de caça compram equipamentos e comida. No Brasil, o Congresso aprovou uma lei de Renda Básica de Cidadania, sancionada pelo presidente Lula em 2004. A lei estabelece que o programa seja implantado, passo a passo, a critério do Executivo, começando pelos mais carentes, como acontece com o Bolsa Família, até o dia em que todos tenham acesso ao direito.
Todo morador do Alasca, inclusive criança, ganha um cheque de aproximadamente US$ 1.600 por ano – desde que tenha vivido lá por um ano inteiro. Esse dinheiro vem de um fundo formado por royalties provenientes da exploração dos recursos naturais. O Alasca é rico em petróleo. O fundo permanente é exemplo pioneiro de renda básica de cidadania. Kelly e eu usávamos nossos cheques para viajar ao Brasil todos os anos. Queríamos nossos filhos bem brasileiros. Os cheques das crianças foram poupados para, um dia, pagar a faculdade. Alguns compram motos para a neve para caçar e prover a carne de subsistência. Capitães de equipe de caça compram equipamentos e comida. No Brasil, o Congresso aprovou uma lei de Renda Básica de Cidadania, sancionada pelo presidente Lula em 2004. A lei estabelece que o programa seja implantado, passo a passo, a critério do Executivo, começando pelos mais carentes, como acontece com o Bolsa Família, até o dia em que todos tenham acesso ao direito.
Luciana Whitaker é autora do livro 11 Anos no Alasca (Ediouro, 2008)
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